Você sabia que para enviar dinheiro do exterior para a Síria, um indivíduo perde mais de 40% apenas com a diferença cambial – e que isso provavelmente seja intencional, pelo Estado Sírio? Confira este relato exclusivo de um refugiado no Brasil que contou sua experiência nos protestos da Primavera Árabe durante a ascensão do atual ditador no país. E entenda por que o dinheiro descentralizado é tão importante.
Introdução
Enquanto voltava de viagem, no domingo, 07 de agosto, tive o prazer de conhecer um refugiado Sírio que vive no Brasil há oito anos, após fugir do regime ditatorial de seu país de origem.
Nesta reportagem [de Vini Barbosa para o Cointimes], vou explicar o que aconteceu e trazer argumentos a favor da liberdade e da soberania individual, além de defender o uso de dinheiro descentralizado peer-to-peer como um dos meios para que ambas liberdade e soberania sejam possíveis, frente à um Estado agressor.
Um encontro inusitado e um relato histórico
Uma conversa que se iniciou frente à minha curiosidade sobre como fazer o verdadeiro tabule árabe, com meu novo amigo explicando a receita tradicional – que pretendo colocar em prática ainda essa semana – escalou para os motivos que o trouxeram até o Brasil, seguido de um relato pessoal que me encheu de ódio e tristeza, ao conhecer um outro lado da história, por alguém que viveu e viu muita coisa acontecer com seus próprios olhos.
Pretendo contar para você, leitor do Cointimes, um pouco do que foi contado para mim nas três horas de viagem ao lado de meu amigo Sírio, cujo nome e algumas outras informações pessoais vou manter em segredo.
Neste material vou trazer alguns dados históricos, para contextualização, mas principalmente o relato pessoal de meu temporário companheiro de estrada. Algumas informações consegui verificar em outras fontes, mas boa parte do que será relatado não pode ser verificado, já que o atual governo do país vem trabalhando há anos para controlar a narrativa, manipular os fatos e até mesmo censurar o que o mundo conhece sobre a realidade árabe.
Ele me contou que já realizou palestra sobre o assunto, se deparando com questionamentos do tipo “mas será que é verdade?”. Não pretendo questionar o que não pode ser verificado. O objetivo aqui é dar voz para um indivíduo que sofreu nas mãos de um governo tirânico e deixar os questionamentos para você mesmo, o leitor.
Embarque comigo nessa viagem que irá cruzar o oceano Atlântico, contornar a região costeira da África e Europa, entrando no mar Mediterrâneo, até o país conhecido como Síria (Syria سُورِيَا).
Contexto histórico sobre a Síria (Syria سُورِيَا).
A Síria é um país localizado na Ásia Ocidental, parte da região conhecida mundialmente como Oriente Médio, ao sudeste da Turquia e Nordeste do Egito e Israel, a oeste do Iraque – tendo feito parte do Império Ottomano, um dos maiores impérios da história humana.
Sua capital, Damasco, está entre uma das mais antigas civilizações do mundo, ao se considerar uma cidade habitada. Atualmente é muito difícil estimar o tamanho da população Síria por conta da guerra, mas, de acordo com o Wikipedia, este número está em cerca de 22 milhões.
Já que falamos em guerra, em março de 2011 estourou uma guerra civil entre múltiplos lados, com o então presidente, Bashar al-Assad, líder do governo vigente chamado de República Árabe da Síria, no controle da maior força bélica e do exército nacional.
A guerra civil foi marcada inicialmente por uma série de protestos contra o governo vigente que formaram parte da “Primavera Árabe”, que teve início na Tunísia e se espalhou por outros países, em reação à casos de corrupção do governo de Bashar al-Assad e uma crise econômica que começava a tomar forma na Síria.
E é aqui onde começa o relato que tive contato no dia 07 de agosto de 2022.
Protestos, infiltrados e mortes
Nosso amigo Sírio, nesta época, estudava na universidade. E foram nas universidades, como normalmente acontece, onde a insatisfação com a corrupção de al-Assad começou a tomar forma.
Ele me contou que, com o tempo, começaram a surgir “alunos mais velhos” em suas turmas, que alegavam ter sido transferidos de outras universidades, ou profissionais mais antigos que queriam se reinserir no mercado de trabalho, em uma época onde o desemprego começou a assolar a população, por conta da crise econômica.
Com o tempo, os alunos descobriram que essas pessoas eram, na verdade, membros da polícia secreta, infiltrados nas universidades para descobrirem os planos sobre os protestos antes que eles ocorressem, além de tentar persuadir os universitários em favor do governo.
Parte destas descobertas ocorreram, segundo relato, por pura soberba destes infiltrados que em algum momento usaram sua posição de forma auto-afirmativa para ganhar popularidade entre os estudantes. Admitindo serem membros do exército e da polícia secreta de Bashar al-Assad.
A resposta aos protestos da Primavera Árabe começaram a se tornar extremamente violentos e nosso amigo Sírio nos contou que diversas vezes fugiu da polícia pelas ruas sob saraivadas de balas de pólvora, pelos quais muitos de seus próprios amigos e colegas da universidade foram atingidos e mortos em via pública.
A ONU estima que mais de 300.000 civis foram mortos em 10 anos de guerra civil no país, mas existe uma chance muito grande desse número ser tremendamente maior, já que existem estimativas de outras fontes que calculam entre 400.000 e 600.000 mortos. Sem contar os desaparecidos.
Os tiros da polícia eram “justificados” como resposta aos protestantes também utilizando armas de fogo, mas conforme relato pessoal, os tiros vindo do lado dos protestantes eram de autoria de mais atores infiltrados, da polícia secreta, que atiravam contra a polícia e os soldados do regime. Atores estes que foram desmascarados inúmeras vezes pelos estudantes.
Para combinar os encontros, os universitários utilizavam grupos fechados do Facebook, já que, segundo me contou, o conhecimento tecnológico é muito precário até mesmo entre o exército e a polícia secreta, que pensavam que Facebook se tratava de um aparelho e não um aplicativo.
Desta forma, eles conseguiam compartilhar mapas com local e orientação para os protestos, incluindo rotas de fuga seguras e tinham cerca de um minuto e meio desde o início dos protestos até sua debandada, para evitar mortes e prisões.
Serviço militar obrigatório e a fuga para o Brasil
É fato histórico e conhecido, sob inúmeras denúncias de ONGs ao redor do mundo que o governo de Bashar foi responsável por centenas de abusos contra os direitos humanos, envolvendo sequestro, tortura e execução de civis opositores.
Segundo dados históricos e também conforme relatado durante minha viagem, o serviço militar na Síria é obrigatório. Todo homem, ao completar 18 anos, precisava se alistar e servir o exército durante a guerra civil. Só era possível “escapar” da obrigatoriedade para estudar no ensino superior, pós-graduação ou pagando uma multa de US $8.000, mas, no último caso, correndo o risco de ser marcado como inimigo político do ditador.
Conforme fiquei sabendo em nossa conversa, os recrutas passaram por diversos testes de lealdade ao Estado e eram obrigados a torturar e executar os presos políticos. Caso algum soldado se recusasse a obedecer às ordens, eles mesmos eram executados e transformados em heróis nacionais, com seus familiares informados de que “morreram com honra na guerra, defendendo seu país”.
Para escapar da decisão entre tirar a vida de um inocente ou perder a sua própria, nosso amigo Sírio entrou na pós-graduação de um curso que nem mesmo era relacionado com o seu de formação.
Ao se graduar, sem mais opções, fugiu para o Brasil em 2014, onde permanece até hoje. Seus irmãos fizeram o mesmo, sendo que um foi para a Alemanha e outro para a Turquia.
A fuga, no entanto, não é fácil, já que o passaporte Sírio é um dos menos aceitos em todo o mundo e é preciso de autorização do governo federal do país de destino, em forma de visto de refugiado.
Conversando sobre a entrada em um novo país, descobri que o visto só é concedido após uma investigação meticulosa envolvendo a Interpol (Polícia Internacional), da qual, ironicamente, o Governo da Síria é membro.
Existem relatos de protestantes e opositores do governo que são marcados pelo Estado Sírio em parceria com a Interpol como terroristas, membros de organizações como a ISIS e, desta forma, ficam impedidos de se refugiarem em outros países membros da Polícia Internacional.
Muitos destes acabam presos em território hostil ou sendo obrigados a se juntarem aos grupos terroristas dos quais foram acusados de fazer parte, para conseguir proteção.
Existem até mesmo relatos de que o próprio governo de Bashar al-Assad é aliado destes grupos terroristas, dos quais ele afirma estar defendendo sua população, sendo que a maior parte dos conflitos entre estes grupos e a República Árabe da Síria não passam de encenação para manter o Estado de Sítio e as leis marciais no país.
Mas esses fatos, infelizmente, não pude verificar.
Situação econômica e o câmbio na Síria
Além dos dois irmãos, também refugiados, o Sírio me contou que tem mãe e um pai de 75 anos ainda em território dominado pelo tirano. Seu pai se recusa a deixar o país, por apego à sua nação e à vida que construiu ali, durante todas as suas sete décadas e meia.
Seu pai é aposentado, recebendo cerca de 330.000 SYP (~$80 dólares) por mês no programa de previdência pública da Síria, equivalente ao nosso INSS – seria aproximadamente R$400,00 em nossa moeda.
Com uma renda mensal tão baixa, os irmãos decidiram ajudar seus pais financeiramente, enviando dinheiro do Brasil, Alemanha e Turquia para a Síria, mas se depararam com um grave problema.
Perde-se mais de 40% ao enviar dinheiro para a Síria
Conforme ele mesmo me informou, o que acontece no mercado cambial da Libra Síria (SYP – Syrian Pound) é uma manipulação com origem do Banco Central, influenciando os bancos privados, que negociam o SYP/USD com um ágio/deságio (spread) de cerca de 40%.
Verifiquei essa informação e é exatamente isso o que ocorre ao tentar enviar dólar (USD), que será convertido por libra síria (SYP) pelas instituições financeiras de remessas.
Ao observar a cotação de $1 dólar em plataformas de remessas e bancos que atuam fora da Síria, temos uma cotação de ~$2.500 SYP.
Enquanto a cotação de $1 USD está em ~$4.200 SYP no mercado interno.
Se, por exemplo, nosso amigo Sírio envia US $100,00 para seu pai, através dos meios convencionais autorizados pelo governo de Bashar al-Assad, o pai receberia cerca de 250.000 SYP.
Sendo que, caso o destino recebesse o mesmo valor diretamente em dólar, por outros meios não convencionais (e proibidos pelo Banco Central da Síria), ele teria o equivalente a cerca de 420.000 SYP.
A diferença de 170.000 SYP (~40%) é perdida no “meio do caminho”.
Para onde vai esse dinheiro?
Você deve ter se perguntado para onde vai esse dinheiro – eu perguntei a mesma coisa.
De acordo com o relato pessoal, a diferença – ou em termos técnicos, o ágio/deságio cambial – é absorvida pelo Banco Central para financiar o governo e a guerra contra os cidadãos. Infelizmente este é outro ponto que seria impossível de confirmar, frente a um Estado totalitário com censura de informações, mas seria algo bem provável de se acontecer em um país regido sob leis marciais, em condições extremas sob conflitos armados constantes.
Além disso, ao deixar as remessas internacionais caras, al-Assad consegue dificultar o financiamento a grupos opositores de seu governo, dificultando o levantamento de recursos para armar os defensores, possibilitar a fuga de refugiados, ou alimentar a população que se encontra totalmente dependente da “boa vontade” do governo em prover todos os recursos necessários para a vida.
Para os que se perguntam por que não enviar diretamente o dólar: ainda conforme relatado, é proibido para qualquer cidadão andar com mais de US $100,00. É crime, passível de prisão.
Consegui confirmar parcialmente essa informação através do site oficial do Reino Unido, onde eles comunicam o alerta de “severas punições para o uso do dólar na Síria”.
Criptomoedas podem oferecer uma alternativa mais justa para remessas de dinheiro
Como a maioria de vocês sabem, além de redator, analista e researcher no Cointimes, eu também sou voluntário engajado na comunidade da Nano (XNO).
Durante nossa conversa, questionei ao Sírio se ele já havia considerado utilizar criptomoedas para enviar dinheiro para sua família, evitando dessa forma as perdas massivas de quase metade do valor enviado, além de financiar o governo agressor do qual ele fugiu.
Ele mesmo não havia considerado essa alternativa e parte disso é devido à falta de informação sobre a possibilidade do uso das moedas descentralizadas para o objetivo de remessas internacionais. Ele também me questionou a respeito das taxas de envio, que eram altas no Bitcoin (BTC) e as taxas de conversão para a moeda local.
Atualmente a rede do bitcoin está com taxas historicamente muito baixas, em cerca de $1,50 USD por transação, mas em abril de 2021 chegamos a ver taxas médias superiores a US $60,00, durante uma alta demanda da blockchain líder do mercado.
Ainda assim, a média de taxas durante este ano representaria um valor muito inferior ao que é perdido com a suposta corrupção do Banco Central ao utilizar os meios convencionais, além de possibilitar um envio de forma soberana e peer-to-peer.
Expliquei que existem outras moedas descentralizadas e seguras, com vantagens e desvantagens em relação ao bitcoin, que poderiam ser utilizadas para remessas financeiras, inclusive explicando meu trabalho com a nano e como eu acredito (opinião pessoal) que ela seja a forma mais eficiente de enviar ou receber dinheiro ao redor do mundo – principalmente ao não possuir taxas de transação e ser confirmada em menos de um segundo, diminuindo as possíveis perdas no meio do caminho.
Além disso, estou mobilizando a comunidade da nano para entender se conseguimos, de alguma maneira, ajudar no câmbio ou para que esse dinheiro possa ser usado diretamente por lá.
Descobri que a Turquia é um país com bastante facilidade de converter criptomoedas pela Lira Turca (TRY), sendo a Binance uma das principais plataformas no país. Através do TRY, seria possível converter para SYP na sequência, evitando as perdas de remessas com USD, criando uma espécie de corredor monetário.
Atualmente, a Binance cobra cerca de 0,1% para o câmbio entre pares, além de 1,5% de taxa para saques e depósitos em TRY. Um total de 1,6% a 1,7% (no caso de dois câmbios: XNO → USDT → TRY). Muito mais barato que as taxas cobradas por serviços tradicionais.
Este é só mais um exemplo da importância do Bitcoin (BTC) e de todo o ecossistema que sua invenção permitiu ter sido construída na última década.
Para muitos de nós, criptos são apenas uma ferramenta de investimento e especulação financeira, mas para outros elas são um caminho real e eficiente para a transferência de dinheiro sem a necessidade de intermediários corrompidos por instituições centrais de grande força, como é o caso do Banco Central de um governo ditatorial, que rouba seus cidadãos para supostamente financiar armas que serão usadas contra as próprias vítimas do roubo.
É mais uma evidência de que precisamos trabalhar para incentivar a adoção destas moedas descentralizadas, criando rotas e alternativas seguras para o uso do dinheiro, que nada mais é do que uma ferramenta para otimizar trocas voluntárias.
Caso você conheça alguém, de qualquer comunidade cripto (Bitcoin, Bitcoin Cash, Monero, Dash, XRP, Nano, etc.) que possa ajudar com essa conexão, câmbio ou uso de dinheiro peer-to-peer descentralizado na região da Síria e Turquia, por favor, entre em contato comigo em minha redes sociais (@vinibarbosabr) – ou melhor ainda, no Discord do Cointimes.
Recentemente, o Príncipe Philip da Sérvia e Iugoslávia, disse que as monarquias do Oriente Médio podem adotar Bitcoin em breve, por questões religiosas. O que poderia ser muito interessante para um país como a Síria em que cerca de 87% da população também é muçulmana.
Criando uma força extra para que moedas fortes não baseadas em débito, como o BTC, XNO e outras possam ser adotadas pela população afetada hoje pela guerra.
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